quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Tatata não estava mais

Eu era menina e os olhinhos curiosos já brilhavam extasiados quando ele se aproximava saculejando com elegância o tanto de pulseiras, colares e as cores que só existiam nas roupas daquele amigo da minha mãe. A figura única de Tatata Pimentel era apenas um convite à viagem sem fim pelas qualidades que ele reunia como ninguém. Assim naturalmente. Falava latim e francês, citava Dostoievski ou Proust com a mesma desenvoltura com que caminhava altivo pelo Parque da Redenção. Ouvia ópera como se fosse samba. Dividia sabedoria como se fosse pão. Nós, jovens famintos de mundo. Com a cabeça armazenando perguntas, o corpo administrando hormônios, o coração colecionando sonhos e uma invasão de liberdade que só os 18 anos emprestam a emocionantes momentos da vida. Bem assim eu e dezenas de parceiros de profissão, dávamos de cara com o professor de Português I que era amigo da minha mãe. Era a primeira semana do resto de nossas vidas na Famecos. Com o cigarro mentolado dançando entre os lábios e dedos, Tatata embaralhou nossos neurônios e esquentou nossas almas ávidas de informação em duas horas. Hipnotizantemente, o mago da comunicação convidava seus alunos a passear por inigualáveis caminhos que iam desde as coleções de arte renascentista, passavam pelo Iluminismo, a intimidade sem escrúpulos das monarquias europeias do século XVIII, as peculiaridades musculares de Apolo e a mitologia grega, a vida sexual de Marquês de Sade, a coleção de joias de Jacqueline Kennedy e as melhores regras de vírgulas... e não terminavam nunca. As histórias de Tatata não terminavam jamais porque era infinito seu conhecimento e sua generosidade em passá-lo adiante. Sempre abusando do seu sutil e inegável talento de quem domina a história e a arte de compartilhá-la com maestria com quem estivesse por perto: o aluno, o Rei da Inglaterra ou o colega de trabalho. Dali por diante foi sempre assim. Segui de olhos curiosos e extasiados todos os passos do meu querido professor e colega de trabalho. Sentindo muito amor e admiração por tudo o que representa em  nossas vidas. Quase maior do que seu sorriso cheio e sua capacidade de ser sincero e feliz. Não sei qual foi a causa da sua morte. Mas imaginar que a tristeza e o vazio podem ser os motivos que o tenham tirado do nosso convívio, aumenta ainda mais a dor pela sua ausência. Talvez porque eu saiba na carne, exatamente como ele sentiu, o poder que  uma certa saudade tem de nos corroer e nos matar por dentro. Tão ousado, como digno. Tão corajoso, como respeitoso. Tão irreverente, como generoso. Tão adorável, como ácido. Tão sociável, como reservado. Tão único como só ele e a Tânia Carvalho sabem ser por aqui nessas bandas. Quando cruzei por ele correndo na Redenção não passou pela minha cabeça que pudesse ser a última vez. Porque ele pertence àquele grupo seleto de pessoas que nos parece imortal. Enquanto eu corria, ele acompanhava melancolicamente seu cigarro mentolado numa mesa de bar. Me abanou sem a sombra daquele sorriso bonito no rosto. Muito menos sem o habitual “ma-ra-vi-lho-sa, beijo pra mãe, pro pai e pra vó.” Desejei durante toda a outra volta no parque que ele ainda estivesse ali. Queria ter sentado ao seu lado, ter pedido uma cerveja gelada, como fazíamos nas intermináveis sextas-feiras do Birra & Pasta, e ter perguntado como andava a vida.
Mas ele não estava mais.

3 comentários:

  1. Mari um lindo e verdadeiro depoimento,bjs. Jorge

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  2. Lindo, Mari, muito emocionante teu texto, gostei muito de rever as imagens que gravaste na memória e que, de uma forma ou de outra, todos nós, amigos, guardaremos alguma história dele. A sensação de urgência de conviver com quem gostamos e admiramos é imensa. Um beijo enorme, Ivan Mattos.

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    1. Mari parabens pelo texto recheado de emoção e carinho. Em NY, longe de poder dar um ultimo adeus ao amigo de faculdade, substituto no Museu, que sempre me tratou com fidalguia faço tuas apalvras as minhas.

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